Poucas vezes na história econômica recente foi tão importante “elevar a vista” e analisar o biênio em lugar de focar apenas no ano em curso. E o tema inflação talvez seja o que melhor sintetiza a relevância desse deslocamento do foco analítico para 2023 e para a herança que 2022 já está deixando para o próximo ano.
A limitação da cobrança de ICMS sobre combustíveis é um bom ponto de partida. Sua motivação foi a escalada inflacionária, cuja face mais clara pode-se ver nas bombas dos postos, tanto no caso da gasolina/etanol quanto do diesel. Enquanto o Banco Central segue adiante com o tratamento ortodoxo da alta de juros, a classe política sacou no âmbito legislativo a alternativa heterodoxa e imediatista da desoneração. Irmão gêmeo dessa medida é o “pacote” social ainda em trâmite que aumenta e estende os benefícios sociais até dezembro.
Se o mundo fosse acabar no final de 2022, ambas as medidas mereceriam muitos aplausos: inflação abaixo dos dois dígitos e milhões de pessoas beneficiadas com mais renda em um momento de grande perda de poder de compra – a contraface mais sombria da própria inflação. E, como diria o rei Luiz de França: “depois de mim, o dilúvio”.
Ocorre que medidas heterodoxas sempre, inevitavelmente, apresentam sua fatura no futuro, mais ou menos próximo. A rigor, a desoneração dos combustíveis não reverte os preços internacionais das commodities, cujas pressões, originadas na pandemia, ainda persistem devido ao conflito na Ucrânia e apesar da alta de juros nos EUA. Também não reduz a cotação do dólar no Brasil. Em outros termos, retira-se uma “camada” na formação dos preços dos combustíveis no varejo e só isso.
Mas a dupla deterioração fiscal, resultante de cortes de receitas e aumento de despesas, coloca no horizonte mais risco para os compradores de títulos do Tesouro. Esse é o único efeito certo quando se analisa o biênio. Do ponto de vista inflacionário, por sua vez, a piora nas contas públicas e o “pacote” social feito às pressas ampliam as pressões inflacionárias no horizonte futuro, deixando claro que os benefícios de hoje tendem a ser anulados rapidamente.
Vistos em conjunto, esses elementos mostram que quase nada mudou em termos inflacionários quando a referência é o biênio 2022-23. Como alguém que deixa para amanhã o que já não fez ontem, a política econômica atual empurrou a inflação para o ano que vem, deixando ainda uma herança de mais desequilíbrio nas contas públicas e juros ainda mais altos para o futuro próximo. Qualquer semelhança com a fábula da formiga e a cigarra não é mera coincidência. E o inverno que se aproxima parece que será cada vez mais rigoroso.
Guardadas todas as devidas proporções, vale outra vez olhar para o exemplo da Argentina, onde a inflação está saltando cerca de 20 pontos percentuais, passando do patamar de 50% para 70% ao ano, em grande medida por conta do profundo desequilíbrio fiscal que está colocando em risco, inclusive, o acordo que vinha sendo negociado com o FMI.
Todo início de mandato no âmbito Federal é desafiador e costuma ser marcado pela busca de “colocar a casa em ordem”. Seja quem for o vitorioso nas urnas, o desafio para a próxima gestão vem se tornando cada vez maior. E, com mais inflação no horizonte, tanto os esforços fiscais de contenção de preços de combustíveis quanto a ampliação dos programas sociais tendem a ser rapidamente corroídos, recolocando os problemas socioeconômicos que lhes deram causa.
Matéria publicada no Sinduscon-SP