Por Vanderley John, professor da Escola Politécnica da USP
A mudança climática e a redução da população que se avizinha certamente vão definir o nosso futuro: bem-estar e renda das pessoas, empresas e países. As consequências sobre a vida prática e a economia (preço de alimentos, por exemplo) dos, cada vez mais frequentes, eventos extremos – enchentes, secas, incêndios florestais, trombas de água, ondas de calor que matam e que, ao elevar a demanda de energia, podem provocar blecautes tornando inútil o ar-condicionado – já estão ficando evidentes para todos e já começam a provocar mudanças no posicionamento dos atores sociais, com consequências políticas no médio e longo prazo.
Muitos no Brasil ainda acreditam que o País tem o direito de ignorar o problema até ficar “desenvolvido”, rico. Partem do pressuposto que baixo carbono custa mais. Estão duplamente enganados. Primeiro, como provam os painéis fotovoltaicos, baixo carbono pode ser baixo custo. Segundo: desenvolvidos serão apenas aqueles que tiverem soluções competitivas de mitigação. As mudanças climáticas vão redefinir desenvolvimento. Ela certamente já define a agenda de inovação, os investimentos em venture capital e os capitais que fazem investimentos de longo prazo. Países emissores perderão acesso a mercados internacionais. Acerta o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) em promover uma política industrial de baixo carbono.
É inevitável que a transição de baixo carbono vá transformar todas as frentes da economia, incluindo a construção civil e os edifícios. Estima-se que os edifícios sejam responsáveis por cerca de 40% das emissões de carbono antropogênico quando se considera todo o longo ciclo de vida (whole-life carbon), que inclui tanto o uso de energia na operação do edifício quanto as emissões na produção de materiais usados na construção, manutenção e até as emissões da demolição. A transformação de uma cadeia de valor difusa como a de edifícios não é trivial.
Edificações, diferentes de outros bens industriais, não são produzidas em larga escala – cada edificação é um protótipo. O investimento em projeto é pequeno e pode ser até nulo na construção informal, pois todos os custos precisam ser pagos pelo protótipo. Os construtores de edifícios são inúmeros, espalhados pelos territórios, são o elo mais fraco da cadeia, com baixa capacidade econômica e técnica, sem capacidade de investir em PD&I visando à inovação radical. Finalmente, a fração formal destes é submetida a uma miríade de normas e regulamentos, incluindo o nível municipal.
Para discutir e compartilhar estratégias de transformação do setor, o Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas, em cooperação com o governo da França, realizou recentemente o 1º Fórum Mundial Edifícios e Clima. O Fórum marca uma transição das políticas de mitigação de CO2, eficiência energética e geração de energias renováveis no edifício (os zero net buildings) – que ainda engatinham no Brasil – para outra que inclui a mitigação do carbono embutido nos materiais dos edifícios.
O Brasil, que irá sediar a COP 30, teve grande destaque no Fórum, com o ministro das Cidades Jader Barbalho Filho apresentando na sessão de encerramento o nosso desafio de produzir mais de seis milhões de moradias, escolas, hospitais, absolutamente necessários para melhorar a qualidade de vida da população. “O Brasil está de volta” e a COP 30 no Brasil gera enormes expectativas na comunidade mundial, que certamente não negará apoio a propostas concretas de ação.
Ao contrário do senso comum, o desenvolvimento e implementação de uma política consistente de mitigação de CO2 ao longo do ciclo de vida dos edifícios são uma oportunidade para o país, incluindo seus governantes.
Em primeiro lugar, porque a redução do carbono embutido é uma das poucas que podem ter custo negativo ou neutro: ele é uma função da quantidade de materiais utilizados. Nossos dados, produzidos com apoio da Cátedra Construindo o Amanhã, mantida pela USP e ArcelorMittal, mostram que o potencial muito significativo de desmaterialização em estruturas. O potencial de mitigação vai depender muito da política pública a ser implantada, mas pode ultrapassar 20%, combinando projeto e materiais, sem contar com as resultantes de inovações disruptivas que, criadas as condições, certamente virão.
Em segundo lugar, estratégias de baixo carbono consistentes abrem acesso aos green loans, que financiam investimentos em infraestrutura de baixo carbono oferecendo novos modelos de financiamento combinados com descontos nas taxas de juros, que segundo o Banco Mundial chegam até 2%. Baixo carbono pode significar redução de custos e permitir produzir mais com o mesmo orçamento, aumentando a população beneficiada.
Em terceiro lugar, política de baixo carbono na habitação implica ganhos de eficiência no uso de materiais – desmaterialização – e energia. Esta busca por eficiência pode se transformar em um motor da inovação, gerando setores mais competitivos, capazes de disputar o mercado mundial, particularmente nos países em desenvolvimento que, como nós, não conseguem pagar pelas soluções vindas do norte.
Finalmente, temos condições de nos tornarmos benchmark mundial no tema, atraindo mais recursos e talentos. Nossa matriz energética é uma das mais limpas do mundo. Nossa indústria de materiais é moderna. Por exemplo, temos o cimento – material dominante – com a menor pegada de CO2 do mundo. Uma grande disponibilidade de madeira plantada. Nossas soluções construtivas são, por uma questão de custo e clima, muito mais econômicas em materiais e energia que a dos países desenvolvidos.
E hoje o Brasil está excepcionalmente equipado para desenvolver e implementar tal política. O Estado brasileiro já tem acúmulo na área de eficiência energética em edifícios. O PBQP-h tem várias décadas de sucesso na articulação de políticas setoriais para a construção. E recentemente, via Ministério de Minas e Energia, contratou o Conselho Brasileiro da Construção Sustentável (CBCS), para desenvolver o Sidac – Sistema de Informações do Desempenho Ambiental da Construção, uma métrica padronizada de medir pegada de carbono e energia, ferramenta fundamental para qualquer política pública. Por ser compatível com os padrões de inventário de carbono internacional, 100% digital, simples de ser compreendido e poder ser implementado a custo viável em pequenas empresas, o Sidac foi considerado no Fórum Mundial uma alternativa às mais caras e muito mais complexas declarações ambientais de produto padrão ISO. Como o Sidac deverá ter declarações de desempenho ambiental de fabricantes, verificadas por terceira parte, ele permitirá incorporação de pegada de carbono como critério em compras públicas, coerente com as políticas de compras públicas.
A política indústria, desenhada pelo MDIC, aposta na descarbonização e o mercado de carbono em discussão. E o setor privado – que inclui os grandes emissores da indústria de materiais e as construtoras de capital aberto – está comprometido com a agenda. Empresas de quase todos os setores já divulgaram metas próprias de descarbonização. O Sinduscon SP já desenvolveu, com o apoio do Ministério das Cidades, uma ferramenta para medir a pegada de carbono da construção – o Cecarbon. A indústria cimenteira brasileira, organizada na ABCP, tem um ambicioso roadmap de baixo carbono. O setor do aço está introduzindo um aço de alta resistência (CA 70), que permitirá a descarbonização do concreto armado e até mesmo produtos de baixo carbono. E neste momento são muitas as associações setoriais que procuram o CBCS para estruturar jornadas setoriais de baixo carbono, integradas ao Sidac.
Por outro lado, o governo tem planos ambiciosos de construção de habitação e infraestrutura. Portanto, dispõe de enorme poder de compra para influenciar a cadeia de valor. E pode se beneficiar de linhas de financiamento de baixo carbono ampliando o atendimento à população. A construção de uma política de estado de construção de baixo carbono, com metas progressivas factíveis e incentivos, garantindo previsibilidade para investimentos em inovação, poderá ser um trunfo político e social.
Ainda temos tempo para construir uma política de baixo carbono economicamente viável e que beneficie a todos. A população receberá mais habitações, mais modernas, eficientes e longevas e ficará menos exposta aos efeitos adversos da mudança do clima. Os setores industriais terão tempo de planejar seus investimentos e desenvolver as inovações necessárias, ganhando competitividade no nível internacional. Se optarmos pela inércia, protegendo artificialmente as tecnologias carbono-intensivas do passado, nos tornaremos não só obsoletos, mas também pouco competitivos e muito mais pobres.
A escolha, ainda, é nossa.
Artigo publicado no Jornal da USP