A condução da política econômica apoia-se em três pilares: o fiscal, o monetário e o cambial. E a prevalência de um deles caracteriza o que se convenciona chamar “ancoragem”. Nos primeiros anos do Plano Real, por exemplo, o câmbio era a grande referência para a política macroeconômica e, portanto, vivíamos a “ancoragem cambial”, estratégia na qual o Banco Central está pronto para defender o valor da moeda nacional frente ao dólar a todo custo.
Desde 1999, à exceção da gestão Dilma, o país viveu um processo de ancoragem monetária. As metas para a inflação passaram a ser o referencial de atuação para o Banco Central na determinação da taxa de juros. Nesse regime, juros são fixados visando o cumprimento da meta, enquanto as variáveis fiscais e cambiais se ajustam de forma relativamente passiva. Por isso também se fala que ocorre, nesse caso, a “dominância monetária” sobre as demais políticas macro.
No entanto, a dominância monetária exige também o equilíbrio das contas públicas. Em outras palavras, a âncora monetária não se sustenta sem sua contraparte fiscal. Se a percepção dos agentes é de que as contas públicas estão em trajetória insustentável, com crescimento potencialmente exagerado da dívida do governo, a fixação da taxa de juros deixa de ter relação estrita com a inflação e passa a ser determinada pelo risco crescente dos detentores de títulos públicos. Para que essa inversão não ocorra, sempre que os juros sobem para combater a inflação, é necessário gerar superávit primário para compensar as maiores despesas financeiras do Tesouro. Mas esse é exatamente o oposto do que está ocorrendo no país hoje.
O que se vê no Brasil atualmente é uma rápida corrosão da ancoragem fiscal. Executivo e Legislativo federais se alinharam no sentido de romper definitivamente o teto de gastos – sem falar na própria legislação eleitoral – sem que haja perspectivas de reversão. Em um quadro assim, agravado pela alta de juros em curso nos EUA e pelas incertezas trazidas pela guerra na Europa, os investidores estrangeiros perdem seu apetite por aplicar recursos em países como o Brasil e a escassez de dólares mantém a taxa de câmbio pressionada. Esta, por sua vez, renova as pressões inflacionárias, obrigando o Banco Central a elevar os juros com efeitos muito limitados sobre a própria inflação – que reage pouco à Selic quando é causada por pressões de custo. Juros altos, por sua vez, deterioram ainda mais a situação fiscal, elevam novamente a percepção de risco dos agentes e o ciclo se realimenta. Em outros termos, a perda da ancoragem fiscal dispara um ciclo vicioso de mais risco, câmbio pressionado, inflação e juros altos. E a política monetária segue a reboque da fiscal, que se torna dominante e desancorada.
Um exemplo extremo das consequências desse mix de política econômica é a Argentina, um eterno fantasma para nós, brasileiros, graças ao velho bordão “eu sou você amanhã”. Naquele país, o descontrole fiscal está na raiz de uma inflação que caminha rapidamente para 100% ao ano, apesar das novas tentativas de controle de preços.
A resposta do governo brasileiro tem sido lançar a ideia – por si mesma muito boa por ser muito óbvia – de se praticar uma política de metas para a relação dívida/PIB. Enquanto alvo e mesmo síntese da ancoragem fiscal, essa relação é amplamente aceita. Mas a mesma é consequência e não causa do equilíbrio fiscal. Não se estabiliza esse indicador sem uma estratégia efetiva de controle dos fluxos fiscais. E estes, por sua vez, estão à deriva, o que deixará uma herança bastante indesejada para o próximo governo – seja ele qual for.
Matéria publicada no Sinduscon-SP