Nos últimos meses, a evolução desfavorável do custo com energia no Brasil exerceu forte pressão inflacionária sobre os preços industriais, o que foi marcadamente acentuado no mercado de materiais de construção. O movimento de ascensão do custo industrial com a energia se verifica há mais de duas décadas, mas recentemente assumiu um caráter mais crítico com o aumento dos preços do petróleo e do gás natural no mundo. O conflito militar no leste europeu aumentou bastante a complexidade da situação energética mundial, trazendo um cenário de fortes incertezas no horizonte de 2022 e 2023. Este documento analisa essa situação e discute seus impactos sobre a construção civil brasileira.
Desde julho de 2020, a forte desvalorização cambial, o aumento dos custos com energia e frete, a escassez de produtos no mercado e o aumento dos preços dos minérios e metais no mercado internacional iniciaram um processo de elevação de preços dos materiais de construção, que culminou com um aumento de 49,7% entre junho de 2020 e fevereiro de 2022, segundo dados do Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil – SINAPI do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, que mede a evolução do custo unitário de edificações residenciais no Brasil. Esse aumento equivaleu a um ritmo de elevação de preços de 27,4% ao ano, taxa que contrasta enormemente com a média verificada nos dez anos anteriores, que havia sido de apenas 3,8% ao ano.
Um aspecto importante a se observar é que o aumento foi generalizado em todo o território nacional. As taxas de variação acumulada entre junho de 2020 e fevereiro de 2022 ficaram elevadas em todas as regiões e estados brasileiros. A região com menor variação foi a Norte, que ainda assim teve aumento acumulado de 43,7% nesse período. O Sudeste teve o maior aumento (51,9%), devido aos movimentos observados em Minas Gerais, cuja inflação dos materiais de construção alcançou 57,2%, e no Espírito Santo, com aumento acumulado de 58,1%. Em termos estaduais, os maiores aumentos foram sentidos na Bahia (62,8%), Sergipe (60,5%) e Paraná (58,5%). O estado de São Paulo apresentou variação de 49,7%.
Outro ponto que chama a atenção é fato de que os maiores aumentos vieram justamente das cadeias produtivas em que os materiais de construção estão inseridos. Segundo o levantamento do IBGE para o Índice de Preços ao Produtor (IPP), a inflação dos preços da indústria de transformação brasileira alcançou 48,6% no acumulado entre junho de 2020 e fevereiro de 2022, taxa parecida com a de aumentos dos preços de materiais de construção.
Em primeiro lugar, deve-se notar a evolução exacerbada dos preços do coque, derivados de petróleo e biocombustíveis, cuja elevação foi de 123,1% nesse curto período. Nessa cadeia estão produtos importantíssimos para a construção civil: (i) o asfalto empregado pelas construtoras de infraestrutura rodoviária, (ii) o etileno usado na cadeia de produtos de material plástico (tubos e conexões, caixas d’água, portas e janelas, pisos e forros e outros materiais de acabamento) e (iii) o óleo diesel, que tem forte influência no custo dos fretes rodoviários e é empregado como combustível nas máquinas e equipamentos da construção.
Outro ponto de destaque é que todas as cadeias produtivas que tiveram aumentos acima ou próximos da média da indústria de transformação tem produtos que são empregados como matérias-primas de materiais de construção, ou são os próprios materiais. Por exemplo, na cadeia de outros produtos químicos, cuja variação de preços foi de 88,5%, estão o cloro utilizado na resina de PVC, os produtos químicos básicos utilizados na fabricação de tintas e a própria indústria de fabricação de tintas. Outras cadeias fundamentais para a construção que figuram nessa tabela são a de produtos de madeira, da metalurgia, de produtos de metais e de produtos de borracha e de material plástico. Mesmo as cadeias de produtos minerais não-metálicos – onde estão o cimento, a cal, o vidro, os produtos cerâmicos e as pedras – e de materiais elétricos tiveram aumentos expressivos, muito embora inferiores à média dos produtos da indústria de transformação.
Peso da energia nos custos de produção
O que chama a atenção nesse padrão de elevação de preços é que a produção de todos esses bens é intensiva em energia e sua distribuição depende muito do frete rodoviário, seja para a recepção de matéria-prima, seja para a entrega dos produtos acabados nas obras e depósitos de materiais de construção. O Gráfico abaixo traz o peso das despesas com energia, produtos derivados do petróleo e serviços de transportes nos principais setores de atividade que produzem materiais de construção, conforme as estatísticas das Tabelas de Recursos e Usos das Contas Nacionais do Brasil (IBGE). Vê-se que essas três componentes de custo tinham, em 2019, peso na faixa entre 20% e 50% dos custos operacionais dessas indústrias. Antes mesmo da forte elevação dos preços da energia e dos derivados de petróleo, nota-se que uma movimentação forte de preços nessas mercadorias e serviços teria impacto profundo nos custos dessas indústrias.
Gráfico. Peso dos custos com energia, derivados de petróleo e transportes nos custos operacionais; por ramo industrial, em (%) do total de custos de produção, Brasil, 2019
Fonte: IBGE. Elaboração: Ex Ante Consultoria Econômica
Assim, não surpreende que os setores produtores de bens minerais não-metálicos – cimento, cal, vidro, produtos cerâmicos e pedras aparelhadas – tenham sofrido aumento de 38,6% entre junho de 2020 e fevereiro de 2022, dado o peso de 28,9% dessas três componentes nos custos operacionais dessas empresas, e uma evolução dos preços de coque, derivados de petróleo e biocombustíveis de 123,1%. Apenas considerando essas três componentes, multiplicando o peso pelo aumento de custos dessas matérias-primas e serviços, chega-se a uma pressão sobre os preços de 35,6%, uma taxa que corresponde a mais 90% do aumento de preço médio verificado nesses setores industriais.
Além dessa questão, deve-se observar o peso desses preços sobre o comércio de materiais de construção e a própria construção civil. Para o comércio, os fretes tinham um peso de 14,3% nos custos operacionais em 2019, ao passo que na construção civil, os produtos do refino do petróleo (asfalto, principalmente) representavam 3,0% dos custos totais e as despesas com combustíveis das construtoras, outros 3,6%. Esses aumentos dos custos dos derivados de petróleo e da energia tiveram impactos diretos nas atividades da cadeia, além de seu efeito sobre o custo dos materiais de construção.
Perspectivas
Um aspecto que causa bastante apreensão é o fato de que a evolução desfavorável do custo da energia que provocou o forte aumento do custo com materiais de construção ainda não capturava todos os efeitos do conflito no leste europeu, que fez aumentar ainda mais o preço do petróleo e do gás natural no mercado internacional. Desde o início da invasão da Rússia no território ucraniano, o petróleo passou do patamar de US$ 100 por barril (Brent), que já era uma cotação elevada, para o patamar de US$ 120 por barril, tendo alcançado a cotação de US$ 133 no dia 8 de março de 2022. Isso aponta para a possibilidade de novos aumentos no combustível, no gás natural e, por conseguinte, na energia elétrica, com efeitos sobre a economia brasileira e a construção.
O conflito militar no leste europeu, contudo, tem outros efeitos sobre a economia mundial. Em primeiro lugar, vale destacar as perdas associadas às quedas de PIB das duas economias em conflito. Considerando o peso da Rússia e da Ucrânia na economia mundial – de 3,3% e 0,4%, respectivamente – o cenário de evolução do conflito ao longo de 2022 indica uma retração do PIB da Rússia entre 8,0% e 10,0% e o da Ucrânia, entre 60% e 80%, o que implica um impacto negativo sobre o crescimento mundial entre 0,5 pontos percentuais e 0,7 pontos percentuais. Mas além dos efeitos diretos nos países envolvidos, há outros desdobramentos do conflito de alcance mundial. O conflito militar envolve quatro outras dimensões muito sensíveis: (i) a produção e o suprimento mundial de grãos, (ii) a produção e suprimento de fertilizantes, (iii) a produção e suprimento de energia e (iv) a produção de metais e gases de uso estratégico na indústria de alta tecnologia. Todos esses efeitos apontam para uma inflação mais elevada, a qual deve ser puxada pelos preços de alimentos e da energia.
Para dar conta de alimentos e combustíveis mais caros, as famílias devem reduzir o consumo de bens duráveis e outras mercadorias não tão essenciais retraindo o consumo de forma geral. De outro lado, devem cair os investimentos num momento de tantas incertezas, o que também terá efeitos recessivos. Devido ao aumento da inflação, as taxas de juros devem ser elevadas ao longo do ano, o que eleva o custo do crédito e também afeta negativamente tanto o consumo quanto o investimento. As projeções de crescimento econômico mundial num quadro de elevação dos preços da energia e dos alimentos, com aumento de 0,5 ponto percentual na taxa de juros dos países desenvolvidos, limitam a expansão mundial para o ano de 2022 em um intervalo mais baixo que o esperado ao final de 2021. Considerando os efeitos nos dois países e os efeitos indiretos, as estimativas convergem para um crescimento econômico mundial entre 2,1% e 2,3. Em qualquer um dos casos, as projeções indicam que ainda deve haver um crescimento econômico positivo, mas há uma quebra bastante significativa na trajetória da economia mundial projetada ao final de 2021, em que o crescimento econômico mundial poderia alcançar 4,0% em 2022.
Com esse cenário de conflito no leste europeu e de perda de dinamismo de crescimento e de aumento da inflação no contexto da economia mundial, o Brasil sofrerá impactos. Os efeitos são da mesma natureza dos que que afetam o resto do mundo, mas com diferentes intensidades no nosso país. Os riscos para a agricultura brasileira são maiores, mas a questão energética deve se restringir ao custo da energia. As projeções macroeconômicas indicam que (i) as elevações de preços do petróleo e do gás natural, dos alimentos, dos fertilizantes e dos metais no mundo, (ii) a elevação de taxas de juros e (iii) a falta de matérias-primas em algumas cadeias globais devem ter um impacto significativo na economia brasileira. Espera-se que Brasil deva acomodar sua economia com uma redução entre 0,6 e 0,7 ponto percentual de crescimento econômico em 2022. Os choques nos preços de combustíveis, fertilizantes, alimentos e metais em 2022 farão com que a taxa de inflação brasileira permaneça acima de 10% por alguns meses. Isso impede que, na média do ano, a inflação brasileira se acomode em 5,6% como era esperado.
Esse cenário de inflação mais elevada, perda de crescimento econômico, aumento das taxas de juros e elevação do custo da energia e dos derivados de petróleo afeta o potencial de crescimento da cadeia produtiva da construção. O núcleo dessa cadeia produtiva, que é formado pelas construtoras e pela autoconstrução, deve amargar uma perda considerável de PIB em 2022, com efeitos secundários no comércio e na indústria de materiais e nos serviços de engenharia e arquitetura. A indústria de materiais, mesmo com o aumento de preços, também deve perder produção em relação a 2021. Assim, espera-se uma retração de PIB da cadeia produtiva que pode alcançar 3% a 4% em 2022.
Matéria publicada no Observatório da Construção/FIESP