O Brasil acaba de dar um passo importante para consolidar o uso do concreto de ultra-alto desempenho (UHPC, na sigla em inglês) no país. A partir de 2025, o UHPC passa a contar com uma norma técnica nacional: a NBR 17246, estruturada em quatro partes, que cobre desde classificação e requisitos até métodos de ensaio e controle de qualidade.
O UHPC proporciona oportunidades singulares para a construção pré-fabricada, como elementos esbeltos, uso efetivo de pré-tensionamento e produtos arquitetônicos e estruturais inovadores, segundo o professor Sri Sritharan, doutor em Engenharia de Estruturas pela Universidade da Califórnia – San Diego, professor titular da Iowa State University. Dentre as possibilidades de aplicação em pré-moldados, o professor cita vigas de ponte (formato tradicional em “I”); superestrutura de ponte (formato otimizado em “π”); sistema de laje de ponte (painéis tipo waffle); conexões; revestimento de tabuleiro; estacas; estruturas de casca (conchas) e torres de aerogeradores.
Historicamente, o UHPC foi usado no Brasil de forma restrita, inicialmente em elementos decorativos e, mais recentemente, em aplicações estruturais, como uma passarela para pedestres apresentada no 64º Congresso Brasileiro de Concreto (CBC), em Florianópolis, e posteriormente instalada em uma comunidade na cidade de São Paulo, segundo Roberto Christ, coordenador do itt Performance e professor do Curso de Graduação em Engenharia Civil da Unisinos.
Por que usar o UHPC?
De acordo com Marco Antonio Carnio, coordenador do Comitê IBRACON/ABECE 303: Uso de Materiais Não Convencionais para Estruturas de Concreto, Fibras e Concreto Reforçado com Fibras e professor de Estruturas de Concreto da PUC-Campinas, hoje o UHPC apresenta grande potencial, especialmente no setor de pré-fabricados, graças à sua ampla gama de aplicações. “A tecnologia permite produzir peças mais leves, reduzindo custos de montagem e possibilitando o uso de guinchos e equipamentos menores. Do ponto de vista ambiental, a alta resistência do material possibilita dimensões reduzidas, o que significa menor consumo de matéria-prima, contribuindo para a descarbonização e a desmaterialização das estruturas. Além disso, o UHPC oferece uma durabilidade superior, prolongando significativamente a vida útil das construções e otimizando transporte, montagem e manuseio”, afirma.
Da experimentação à padronização
Primeiramente, o CT 303 do IBRACON/ABECE publicou uma prática recomendada que ajudou a uniformizar o conhecimento. No entanto, logo em seguida, o comitê começou a trabalhar em uma norma nacional, para conferir responsabilidade e segurança ao uso do concreto.
“Antes da norma, os projetistas precisavam recorrer a documentos estrangeiros, como ACI, FHWA e AFGC, ou a normas brasileiras indiretas, como a NBR 16935 e a NBR 16938, o que limitava a difusão do material e aumentava os riscos de aprovação e execução de projetos”, explica Roberto Christ, coordenador do itt Performance e professor do Curso de Graduação em Engenharia Civil da Unisinos.
De acordo com o engenheiro Alvaro Barbosa, coordenador técnico da Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Concretagem (ABESC), a ideia era tirar o UHPC do limbo “experimental”, dar segurança jurídica a projetos e contratos, padronizar ensaios, qualidade e dosagem, e alinhar o país ao que ACI, FIB e AFGC já vêm consolidando. “Em 2024, ainda se apontava que, sem norma própria, o uso ficava restrito à pesquisa e a guias estrangeiros.”
Como fica a NBR 17246?
De acordo com Barbosa, a nova série de normas é organizada em quatro partes:
• Parte 1 – Classificação, requisitos e especificação: define termos, classes de resistência, propriedades reológicas, durabilidade e critérios de desempenho do material.
• Parte 2 – Ensaios de validação de dosagem e produção: apresenta procedimentos para validar traços, empacotamento de partículas, adição de fibras e controle de reologia.
• Parte 3 – Controle de qualidade: detalha planos de inspeção, amostragem, rastreabilidade de fibras e insumos, e critérios de aceitação.
• Parte 4 – Métodos de ensaio: estabelece métodos para ensaios mecânicos e de durabilidade, incluindo compressão, tração, tenacidade e permeabilidade.
Para Christ, todas as propriedades especificadas na Parte 1 são importantes. “Como o UHPC apresenta grandes vantagens, sua utilização é viável em diversas aplicações — não apenas em elementos estruturais, mas também em elementos decorativos e estruturas complementares. Dependendo da aplicação, uma propriedade pode ter maior relevância que outra. De forma geral, as principais propriedades especificadas na norma são: resistência à compressão; resistência à tração no limite de elasticidade (que evidencia o comportamento pós-fissuração); consistência da mistura; densidade aparente; teor de ar incorporado; retração; índice de vazios; carga elétrica passante; e permeabilidade aparente a gases”, destaca.
Segundo Barbosa, entre as propriedades que exigiam regulamentação específica estão a alta resistência à compressão (mínimo de 100 MPa no Brasil), a resistência à tração no limite de elasticidade (indicando o comportamento pós-fissuração), a consistência, a densidade aparente, a retração, a permeabilidade e a carga elétrica passante. O UHPC também exige atenção especial à produção, ao controle de fibras, ao lançamento, ao adensamento e à cura, mas não demanda mudanças significativas nos métodos construtivos tradicionais.
Barbosa aponta outras propriedades que exigiam regulamentação específica:
• Comportamento em tração com fibras (endurecimento pós-fissuração, tenacidade/energia).
• Reologia/trabalhabilidade (mistura de baixa relação a/aglomerante, aditivos de alta eficiência).
• Durabilidade (baixa permeabilidade, cloretos, gelo-degelo, abrasão) e fogo (parâmetros térmicos ainda carecem de padronização local).
Alinhamento internacional
A série brasileira se inspira nas normas europeias, especialmente no Eurocode, e mantém convergência com referências internacionais, como o ACI 239, os guias AFGC (França) e o FHWA (EUA), segundo Barbosa.
“As normas técnicas brasileiras sobre o UHPC estão mais alinhadas com as definições das normas europeias, utilizando como referência o Eurocode”, informa Christ.
Apesar da inspiração nas normas europeias, elas foram adaptadas às características brasileiras. “No caso do UHPC, há particularidades importantes: a produção depende de cimentos nacionais, com características próprias, além de agregados diferentes e fibras especiais. Isso torna o processo mais complexo, já que nem todos os fabricantes dispõem dessas fibras — hoje, existem apenas dois ou três produtores globais. Também é necessário considerar o papel dos aditivos, em grande parte fornecidos por empresas multinacionais, mas já com experiências nacionais relevantes. Assim, o desafio está em adaptar essas soluções às condições específicas do Brasil.
No campo do projeto, a ABNT NBR 6118 traz adaptações a partir das normas internacionais, mas ajustadas à realidade brasileira. “No país, estamos habituados a trabalhar com concretos de até 90 MPa de resistência à compressão — em geral, de 50 a 92 MPa. Já no caso do UHPC, falamos de valores bem superiores, de 100 a 200 MPa, podendo chegar a 230 MPa. Produzir concretos acima de 100 MPa não é tarefa simples e representa uma meta desafiadora”, destaca Carnio.
Barbosa compartilha um quadro comparativo com as normas internacionais:
Perspectivas
O lançamento da norma promete estimular o mercado de pré-fabricados e a indústria de concretos especiais, consolidando o UHPC como alternativa viável para projetos que exigem alta resistência, durabilidade e desempenho estrutural diferenciado. Para engenheiros e projetistas, a expectativa é que a norma facilite a aprovação de projetos, reduza riscos e abra espaço para inovações construtivas com o material.
De acordo com Carnio, o Ibracon agora também está trabalhando em uma comissão de norma para UHPC relacionada a projetos, especificamente sobre como projetar utilizando UHPC. “A norma dá segurança sobre o sistema construtivo para toda a sociedade — isso inclui construtoras, fabricantes de materiais, projetistas, consumidores, entre outros. Hoje, há ações isoladas, desenvolvendo aplicações, especialmente em pré-fabricados. Mas ainda é incipiente. Com a norma, tende a ganhar maior escala. As duas normas foram feitas em paralelo, mas a de projetos ainda está em fase final”, aponta.
Matéria publicada no Massa Cinzenta