Aos poucos, o setor da construção civil brasileira finalmente se volta para a industrialização. E, assim como ocorre em outras atividades, esse movimento tem sido liderado por startups, que na construção ganharam o nome específico de construtechs.
É o caso da Prevision, construtech brasileira dedicada ao planejamento e gestão eficientes de obras. Mas a empresa não está sozinha. Segundo a CEO Paula Lunardelli, já existem diversas startups focadas em diferentes etapas de produção, desde a fase de projeto e viabilidade até a entrega e aquisição dos empreendimentos, passando pela atividade construtiva em si.
Segundo ela, as tecnologias atuais que impulsionam a construção industrializada incluem soluções como a aplicação de drones para captação dos terrenos na fase inicial dos projetos, realidade aumentada no momento da aquisição e tecnologias de análises preditivas (ou IoT – Internet das Coisas) na fase de operação. Mas não fica só nisso.
PARÂMETROS
Como ressalta Lunardelli, as construtechs já estão presentes em todos os processos da construção civil. Como parâmetro, ela cita o “Mapa de Construtechs e Proptechs 2021”, produzido pela Terracotta Ventures, empresa de investimentos em negócios de tecnologia no setor de construção e no mercado imobiliário.
De acordo com o levantamento, atualmente as startups estão presentes em quatro áreas macro: “Projeto e Viabilidade”, “Construção”, “Aquisição” e “Propriedade em Uso”. Na primeira, existem categorias mais voltadas para a construção, como burocracia pública, crowdfunding, inteligência de mercado, mapeamento, projeto, loteamentos, smart cities, terrenos e outras subcategorias.
No caso da área de Construção, as categorias incluem orçamento, gestão de obra e de documentos, mapeamento e acompanhamento, métodos construtivos, maquinário e materiais, sustentabilidade, pós-obra e outras. “Nas demais áreas macro, há diversas categorias e subcategorias que podem se relacionar com a construção civil, mas que têm maior atuação no mercado imobiliário”, ela ressalta. “Isso inclui as categorias de compartilhamento de espaços (coliving), condomínios, smart homes e outras.”
É certo que todos esses novos conceitos estão mudando a realidade da construção. De acordo com Íria Doniak, presidente executiva da Associação Brasileira da Construção Industrializada de Concreto (Abcic), as construtechs contribuem para ampliar a modernização do setor, seja ao acelerarem a transformação digital, aumentarem a produtividade e a economia dos processos, induzirem novos modelos de negócios ou inserirem tecnologias voltadas para a Construção 4.0.
“De modo geral, há um melhor aproveitamento em gestão e monitoramento dos empreendimentos, otimizando as soluções em engenharia, os sistemas construtivos e as tecnologias de materiais, que requerem a expertise de pesquisadores, arquitetos e engenheiros dedicados ao tema”, ela aponta.
Isso explica por que as mudanças no setor têm se acelerado rapidamente nos últimos anos. “Atualmente, há mais de 800 construtechs e proptechs ativas no Brasil”, posiciona Lunardelli. “Elas resolvem as dores do mercado com tecnologias e soluções inovadoras.”
TRANSFORMAÇÃO
Mas nem sempre foi assim. De acordo com a especialista da Prevision, “o setor da construção civil sempre teve uma cultura muito tradicionalista, o que dificultava as mudanças”.
Nesse ponto, a presidente executiva da Abcic tem a mesma percepção. Em uma análise comparativa, ela diz que a construção não acompanhou o nível de evolução tecnológica de outros setores, como o agronegócio e a indústria automobilística, por exemplo.
Apostando na inovação, as construtechs têm sido fundamentais para esse necessário processo de transformação, pois oferecem tecnologias que aprimoram todas as etapas de uma obra, dentro ou fora do canteiro. “Além disso, elas estão presentes em diversas áreas, colaborando nas etapas de prospecção, orçamento, gestão, monitoramento, locação de equipamentos, gerenciamento de resíduos e segurança do trabalho, dentre outros”, comenta Doniak.
Obviamente, o mercado está cada vez mais atento a isso. Para o gerente de engenharia da Rottas Construtora e Incorporadora, Rodrigo Cardoso, a construção civil sempre foi vista como uma “indústria de incertezas”, marcada pela baixa produtividade, o que explica o surgimento de tantas construtechs nos últimos anos, ligadas às oportunidades de tornar o setor mais produtivo por meio da tecnologia.
“O que vai se evidenciar nos próximos anos é a consolidação desse movimento, que está no radar dos grandes investidores”, diz ele. “Novas tecnologias e modelos de negócio irão ampliar a margem das empresas, que irão reinvestir e criar um ciclo muito forte de crescimento, em especial no setor imobiliário.”
Ou seja, o mercado da construção imobiliária finalmente entendeu que, por meio da inovação, é possível melhorar a produtividade, diminuir os custos e aumentar a rentabilidade. “A inovação faz com que as empresas se tornem mais competitivas e eficientes”, resume Doniak, da Abcic.
INDUSTRIALIZAÇÃO
Para alcançar esse objetivo, todavia, é fundamental a adoção de processos industrializados. No rol dos principais sistemas construtivos industrializados, recapitula a executiva da Abcic, estão incluídas as tecnologias de pré-fabricados em concreto e estruturas metálicas, já incorporadas ao dia a dia do setor.
Depois disso, chegaram o wood frame (madeira), drywall (gesso), steel frame (aço) e light steel frame (placas de aço galvanizado leve). Mais recentemente, fortaleceram-se as opções de fusão da engenharia civil com a de produção, com a possibilidade de modularização e de mudança do canteiro para uma linha de montagem (construção off-site).
Não que isso seja uma novidade totalmente inédita, pois já houve aplicações prévias dessas técnicas de modo incipiente no país. “É bom lembrar que o módulo pronto é uma construção em 3D, mas o conceito também é aplicável em 2D, quando montamos os módulos com painéis, por exemplo”, explica Doniak. “E que o módulo 3D pronto também já foi muito utilizado para banheiros e celas de presídios em algumas regiões do país, quando ainda era chamado de monobloco.”
Além disso, a executiva acentua que, nos anos 2000, muitos empreendimentos hoteleiros de estrutura convencional já adotavam fachadas pré-moldadas de concreto e divisão interna em drywall. “Esse modelo imprimia velocidade a esse tipo de empreendimento, em que o retorno rápido do investimento (‘payback’) era fundamental”, completa.
Agora, a técnica se disseminou. Em outros continentes, especialmente na Ásia, a construção modular tem crescido rapidamente. Com a eclosão da pandemia, o mundo assistiu atônito à construção de hospitais com módulos em aço na China, em cronogramas impressionantes de apenas alguns dias.
Em Singapura, recentemente foi erguido o maior empreendimento de construção modular em concreto do mundo, com 40 andares. O projeto habitacional Clement Canopy possui duas torres com 140 m de altura cada. “Foram utilizados 1.889 módulos para 505 apartamentos de luxo, cada módulo com peso entre 16 a 29 toneladas”, descreve Doniak.
Ainda em Singapura, o projeto Avenue South Residences – também projetado em concreto – deve superar o Clement Canopy com seus 56 andares. “Com distintos sistemas construtivos e materiais, a industrialização da construção civil avança no mundo todo e tem um grande potencial de crescimento no Brasil”, afirma a especialista.
MIX DE SISTEMAS
Um bom exemplo disso é o empreendimento Parque da Cidade, em São Paulo (SP), que compreende três torres com 17, 20 e 23 pavimentos. Executado em 26 meses, o projeto – vencedor do “Prêmio Produtividade #DoMesmoLado”, da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) – adotou um mix de sistemas construtivos.
No núcleo central, explica Doniak, o uso de formas trepantes executadas in loco integra os pavimentos com lajes alveolares pré-fabricadas de concreto protendido, vigas também pré-fabricadas de concreto protendido e pilares moldados no local.
Os subsolos foram integralmente construídos com elementos pré-fabricados de concreto e fachadas com painéis pré-fabricados. Em alguns pontos, também houve a introdução de elementos metálicos. “Com particularidades de terreno e de concepção arquitetônica, o projeto teve um resultado excepcional na integração de todas as disciplinas e tecnologias disponíveis”, complementa.
Para a construção do empreendimento, também houve a adoção de tecnologias de execução e monitoramento, como o levantamento aerofotogramétrico por drones. “Esta tecnologia também foi adotada para o monitoramento da execução do avanço vertical e horizontal do empreendimento, comparando ao Modelo BIM (4D – Planejamento)”, diz a executiva.
Além das mudanças nos processos construtivos, a tecnologia tem contribuído em outros pontos para uma maior produtividade nas obras. O ambiente industrial é favorável para a imersão nessa revolução, especialmente quando se fala em uso de Big Data, BIM e sistemas on-line.
Analisando o mercado imobiliário, Wanderson Leite, CEO da Prospecta Obras (startup que mapeia obras em andamento no Brasil), afirma que a realidade virtual já é uma das principais tecnologias utilizadas no segmento.
Segundo ele, essa tecnologia vem crescendo entre as construtoras para auxiliar na demonstração de imóveis na planta, sem necessidade de maquete física. “A imersão que proporciona é enorme, permitindo a visualização do imóvel em 360º, o que ajuda muito nas vendas”, comenta.
Mas, para que tudo isso se consolide, ainda falta uma maior profissionalização dos colaboradores da construção civil, para que se tornem mais qualificados e produtivos. “Se estamos trabalhando com sistemas construtivos mais inovadores, a nossa mão de obra precisa acompanhar essa evolução”, aponta Leite. “Para atingirmos altos índices de produtividade, não há outro caminho senão a profissionalização.”
Matéria publicada na Revista M&T